Cultura da sentença precisa ser substituída pela cultura da pacificação
A crise do Poder Judiciário, representada especialmente pela morosidade na
prestação jurisdicional, aliada à cultura litigiosa enraizada na sociedade
brasileira, exige a busca de meios de solução de controvérsias mais adequados,
diversos do modelo clássico do processo judicial, que se funda na imperatividade
das decisões do Estado-juiz.
Os meios extrajudiciais de solução de conflitos mais usuais e conhecidos são a
negociação, mediação, conciliação e arbitragem. Na negociação, em regra, as
partes tentam resolver suas divergências entre elas, mas nada impede que um
negociador intervenha no procedimento negocial. A mediação é indicada para casos
em que as partes em litígio têm uma relação mais intensa e prolongada, de modo
que o mediador obrará para reaproximá-las, e não para propor um acordo; o
conciliador, por sua vez, intercede na relação das partes para pôr fim ao
embate, tendo como meta alcançar o acordo[1]. Já a arbitragem é instrumento de
heterocomposição, em que um árbitro (ou tribunal arbitral) é escolhido para
dirimir conflito entre pessoas capazes de contratar que verse sobre direito
patrimonial disponível, cuja decisão é final e vinculante, tal como sucede na
jurisdição estatal.
Desde o advento da Lei de Arbitragem (Lei 9.307/1996), que trouxe significativos
avanços à prática arbitral no cenário doméstico, o Brasil vem aprimorando suas
leis e adequando-se à crescente necessidade de regulamentação de métodos
extrajudiciais de resolução de conflitos.
Destaca-se, nesse sentido, a Resolução 125[2], de 29 de novembro de 2010,
aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça, que consolidou o chamado tribunal
multiportas, mecanismo pelo qual o poder público coloca à disposição da
sociedade meios variados para se buscar a solução mais adequada de conflitos,
prestigiando os métodos consensuais, a exemplo da negociação, mediação e
conciliação.
A mudança de mentalidade e o esforço da comunidade jurídica relativamente ao
fomento dos meios adequados de solução de litígios foram materializados nas
relevantes inovações legislativas realizadas ao longo de 2015, especificamente
no que diz respeito à criação do novo Código de Processo Civil (Lei
13.105/2015), à reforma pontual da Lei de Arbitragem (Lei 13.129/2015) e ao
Marco Legal da Mediação no Brasil (Lei 13.140/2015).
O Código de Processo Civil de 2015, alinhado à Lei de Arbitragem, confere à
arbitragem status de jurisdição, preceituando que não se excluirá da apreciação
jurisdicional ameaça ou lesão a direito, sendo permitida a arbitragem, na forma
da lei (artigo 3º, parágrafo 1º). Impõe, como uma das normas fundamentais do
processo civil, o dever de estímulo às práticas da conciliação, da mediação e de
outros métodos de solução consensual de conflitos, o que deverá ser feito tanto
por juízes quanto por advogados, defensores públicos e membros do Ministério
Público, antes e/ou durante a disputa judicial (artigo 3º, parágrafo 3º). O
novel diploma processual também determina aos tribunais a criação de centros
judiciários de solução consensual de conflitos (artigo 165). Os métodos de
resolução de conflitos ainda são abordados em inúmeros outros dispositivos do
referido diploma processual.
A reforma da Lei de Arbitragem incorporou à redação originária questões de suma
importância para o desenvolvimento do instituto no país, que já eram de
entendimento consolidado da doutrina e jurisprudência. Um exemplo disso é a
possibilidade de utilização da arbitragem pela administração pública direta e
indireta, na forma do parágrafo 1º do artigo 1º.
Já a Lei de Mediação regulamenta tanto a mediação judicial quanto a
extrajudicial entre particulares, assim como dispõe acerca da autocomposição de
conflitos no âmbito da administração pública. Tal legislação corrobora ainda
mais o fortalecimento e o incentivo à mediação como um meio eficiente e prático
de solução de controvérsias.
Com o objetivo de aprimorar, incentivar, expandir e debater a prática dos meios
extrajudiciais de conflitos, o Centro de Estudos Judiciários do Conselho da
Justiça Federal (CEJ/CJF), em parceria com a Escola Nacional de Formação e
Aprimoramento de Magistrados (Enfam) realizou, em agosto de 2017, a I Jornada
sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígio. O encontro, que aconteceu no
auditório do Conselho da Justiça Federal, em Brasília, foi dirigido pelo
corregedor-geral da Justiça Federal e diretor do CEJ, ministro Og Fernandes, e
contou com uma comissão científica, por ele nomeada, composta dos ministros Luis
Felipe Salomão e Antonio Carlos Ferreira, ambos integrantes do Superior Tribunal
de Justiça, bem como por Kazuo Watanabe e Joaquim Falcão, professores
especialistas no tema. Em tal evento foram aprovados 87 enunciados: 34 na
comissão de mediação; 13 na comissão de arbitragem; e 40 na comissão de outras
formas de solução de litígios[3]. Os enunciados buscam aprimorar aspectos legais
e estimular políticas públicas e privadas para os métodos extrajudiciais de
solução de conflitos.
A propósito, em 28 de setembro de 2016, o Pleno do Superior Tribunal de Justiça
deu um passo histórico em direção à implementação da Justiça conciliativa. Por
meio de emenda regimental e de forma pioneira, foi aprovada a criação de um
centro de mediação para solução extrajudicial de conflitos levados à análise
daquele tribunal. Os detalhes da implantação do centro foram apresentados pela
Emenda 23 do STJ, de 28 de setembro de 2016, publicada no Diário da Justiça
Eletrônico em 14 de outubro daquele ano. Além de alterar os artigos 11 e 21,
essa emenda insere o “Capítulo V” ao Regimento Interno do Superior Tribunal de
Justiça, destinado exclusivamente à mediação e cujo texto se encontra abaixo
reproduzido:
Art. 288-A. O Centro de Soluções Consensuais de Conflitos do Superior Tribunal
de Justiça, responsável por realizar sessões e audiências de conciliação e
mediação e por desenvolver programas destinados a auxiliar, orientar e estimular
a autocomposição, será coordenado pelo Ministro designado pelo Presidente.
Parágrafo único. O Presidente, por proposta do Ministro Coordenador,
disciplinará a criação e o funcionamento do Centro, bem como a inscrição, a
remuneração, os impedimentos, a forma de desligamento e os afastamentos dos
mediadores, com observância das normas de regência. Art. 288-B. O mediador
judicial será designado pelo Ministro Coordenador dentre aqueles que constarem
do cadastro de mediadores mantido pelo Centro de Soluções Consensuais de
Conflitos do Superior Tribunal de Justiça ou de cadastro de âmbito nacional.
§ 1º O relator poderá solicitar ao Centro a indicação de mediador para
auxiliá-lo também em procedimento de conciliação.
§ 2º O relator pode encaminhar o processo de ofício para a mediação.
Art. 288-C. É admitido o uso da mediação para solução das controvérsias sujeitas
à competência do Tribunal que versem sobre direitos disponíveis ou sobre
direitos indisponíveis que admitam transação, conforme a legislação de regência,
resguardada a gratuidade da mediação aos necessitados”.
Pouco tempo depois da aprovação da referida emenda, por iniciativa do ministro
Luis Felipe Salomão, entusiasta dos meios adequados de solução de controvérsias,
foi realizada a primeira mediação exitosa do STJ. Trata-se do Recurso Especial
1.593.118/SP, que envolveu litígio securitário entre uma segurada e a seguradora
Bradesco Saúde S/A.
Outro exemplo recente de prestígio à mediação advém de uma decisão monocrática
proferida em novembro de 2017 pelo ministro Marco Buzzi, que decidiu no sentido
de manter incólume o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro para o fim de permitir que a empresa Oi realize mediação com seus
credores[4].
Especialmente no mundo empresarial, a aplicação dos métodos adequados de solução
de conflitos agiliza a solução dos embates e diminui drasticamente os custos de
um litígio judicial para as partes litigantes. No caso da empresa Oi, que está
em recuperação judicial, é fundamental que haja sucesso na mediação com os seus
credores a fim de possibilitar o cumprimento do plano de recuperação judicial, o
que certamente beneficiará a todos os envolvidos com a sociedade recuperanda.
De fato, o STJ tem se manifestado favoravelmente à adoção dos métodos
extrajudiciais de resolução de controvérsias[5], sinalizando para o Brasil que
envidará esforços em prol da Justiça conciliativa. Nessa toada, a paradigmática
decisão do STJ, que implementou um centro de mediação interna corporis, reforça,
com mérito, o atributo de tribunal da cidadania. Isso porque a via conciliativa
tem por finalidade a garantia ampla e irrestrita do acesso à Justiça, de modo a
conferir efetividade ao princípio insculpido no artigo 5º, inciso XXXV, da
Constituição Federal de 1988.
Os efeitos benignos que a mediação pode proporcionar aos jurisdicionados torna
concreto não só o acesso formal à Justiça, mas também e, principalmente, o
acesso material à Justiça. A Constituição Federal assegura o acesso formal à
Justiça, garantindo aos jurisdicionados, por meio do direito de ação, a solução
de seus conflitos perante o Poder Judiciário. Diferentemente do acesso formal,
garantido pelo texto constitucional em si, o acesso material à Justiça é aquele
em que o cidadão de direito consegue efetivamente o pronunciamento judicial
adequado a respeito do conteúdo do direito pleiteado, eis que a missão social
pacificadora do Poder Judiciário não se dá por cumprida mediante o alcance de
quaisquer decisões, independentemente de seu respectivo teor.
A criação de um centro de resolução extrajudicial de litígios no STJ é louvável
e deve ser tida como exemplo por todos os tribunais brasileiros. Vale lembrar
que a atual legislação processual civil prevê o dever de os tribunais criarem
centros judiciários de solução consensual de conflitos, como já dito acima,
assim como a Seção II, artigo 8º, da Resolução 125/2010 do CNJ, também
mencionada anteriormente neste breve escrito.
Não obstante os esforços institucionais em prol da Justiça conciliativa, a
realidade é que a utilização dos métodos adequados de soluções de conflitos no
Brasil ainda é tímida em relação ao montante expressivo de ações judiciais em
curso sem qualquer incentivo à pacificação — não é raro ver processos judiciais
em que o magistrado, de ofício, deixa de determinar a audiência prévia de
mediação e conciliação, o que nos parece ir de encontro à nova sistemática
processual civil e às disposições da Lei de Mediação brasileira. Por isso,
faz-se necessário não tão somente a criação de centros especializados de
mediação e conciliação, mas também, cada vez mais, de escolas especializadas em
formar profissionais capazes de exercer a posição de negociadores, mediadores e
conciliadores.
Com estrutura e regulamento apropriado, não há dúvidas de que o centro de
mediação criado pelo STJ colherá bons frutos e incentivará com seus resultados
os demais tribunais brasileiros. Espera-se que o Brasil continue prestigiando a
Justiça conciliativa a fim de que a atual cultura da sentençaseja paulatinamente
substituída pela cultura da pacificação.
[1] A distinção entre mediação e conciliação é sutil, razão pela qual alguns
países não a adotam. No Brasil, ambas pressupõem a intervenção de um terceiro
imparcial. Em ambas são utilizadas técnicas específicas para obter a solução do
conflito, a exemplo da Batna (Best Alternative To a Negociated Agreement). Essa
técnica é largamente difundida em diversos cursos e obras por Roger Fisher e
William Ury, professores de Harvard Law School.
[2] Essa resolução passou por ajustes através da Emenda 1, de 31 de janeiro de
2013.
[3] Para visualizar a íntegra dos enunciados, acesse: http://www.cjf.jus.br/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/publicacoes-1/cjf/corregedoria-da-justica-federal/centro-de-estudos-judiciarios-1/prevencao-e-solucao-extrajudicial-de-litigios/?_authenticator=60c7f30ef0d8002d17dbe298563b6fa2849c6669.
[4] Disponível em: https://www.jota.info/justica/mesmo-em-recuperacao-oi-pode-realizar-mediacao-diz-stj-16112017.
[5] Não se pode deixar de dizer que, também no âmbito da arbitragem, são
notáveis as decisões do STJ, que tem se posicionado, salvo raríssimas exceções,
em favor desse florescente instituto, para se valer de expressão alcunhada por
Sergio Bermudes.
Por Gustavo Fávero Vaughn, advogado do Cesar Asfor Rocha Advogados, mestrando em
Processo Civil pela Universidade de São Paulo e membro da Comissão de Mediação
da OAB-SP, do IBDP, do Ceapro e do CBAr. E Matheus Meneghel Costa, sócio do
Agnaldo Costa Advogados e especialista em Direito de Empresa pela Escola de
Direito de São Paulo (FGV–Law). Atuou como conciliador no Juizado Especial Cível
da Comarca de Campinas (SP).
Fonte: Revista Consultor Jurídico, 27 de abril de 2018, 7h01